Mais de um bilhão de toneladas de alimentos são desperdiçados num mundo com 815 milhões de famintos

por Amelia Gonzalez Perto de minha casa tem feira-livre. Semanalmente, portanto, acompanho desde manhã bem cedinho o movimento dos feirantes. Alguns recebem as mercadorias trazidas em kombis, outros já trazem tudo num furgão...

por Amelia Gonzalez

Perto de minha casa tem feira-livre. Semanalmente, portanto, acompanho desde manhã bem cedinho o movimento dos feirantes. Alguns recebem as mercadorias trazidas em kombis, outros já trazem tudo num furgão próprio.Como se estivessem arrumando a vitrine de uma loja de joias caras, há os que empilham frutas, verduras, legumes, carnes e ovos um a um, com cuidado, olhando de longe o desenho que ficou. Outros dispõem tudo em pequenos sacos. A arrumação só termina quando chega o primeiro cliente.

Mais do que o design da exposição dos alimentos, porém, tem grande importância para o feirante o aspecto da mercadoria que pretende passar adiante. As maçãs são esfregadas, às vezes uma a uma, para que tomem brilho. Assim também com berinjelas, abobrinhas, cebolas. Escolhidas a dedo, precisam estar de um jeito que agrade aos olhos da clientela. E, é claro, nesse aspecto entra o que se considera como beleza aqui no Ocidente, aqui no Rio de Janeiro, aqui na Zona Sul da cidade. É o nosso padrão de beleza que vaiinfluenciar as vendas, e isso se aplica, sim, também a legumes, frutas, verduras. Quem vai querer comprar uma maçã meio amassadinha ou um pimentão menos verde brilhante? Pouco a pouco, esses produtos ‘feinhos” vão ficando de lado, vão virar xepa.

E acaba acontecendo o que vi na semana passada: um tabuleiro cheio de pimentões foi para o asfalto no fim da feira, quando eu passava de volta, já no meio da tarde.Ficariam ali à espera do pessoal da limpeza urbana, ou de alguns excluídos pelo sistema econômico, que não têm dinheiro para comprar os pimentões bonitos. Passei e parei para observar melhor. Muitos pimentões tinham apenas algum amassado. O feirante, que ainda estava por ali, chegou perto porque percebeu minha curiosidade.

– Não adianta, eu também tenho pena quando vejo jogar fora.Mas se puser para vender, não sai. A maioria das pessoas só compra os maiores e mais bonitos – disse-me ele.

Concordei.Eu mesma, talvez, já tenha rejeitado na vida algum vegetal, verdura, fruto ou legume com cara de passado. Lembrei-me das minhas andanças pela Ceasa (Central de Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro) em Irajá, a maior da América Latina, quando observo sempre os vendedores perguntarem aos seus clientes:

– Vai levar para cozinha ou para vender?

Os produtos mais bonitos, escolhidos para a venda, têm duas características principais. Eles sempre acabam mais cedo, porque os clientes chegam assim que abre a Ceasa, por volta das 3h da manhã. E são mais caros, justamente porque precisam cumprir duas funções: não só nutricional, mas também ser agradável aos olhos de quem os compram.Saindo dali, serão embalados ricamente para fazerem bonito nas gôndolas.

Nesse instante, minha memória foi para a entrevista que fiz com a presidenta do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional à época, Maria Emilia Pacheco, aqui para o G1.Ela defendeu a agroecologia, censurou bravamente o uso abusivo dos agrotóxicos e, a folhas tantas, quando conversávamos já com o gravador desligado, falamos sobre a aparência dos alimentos que não são plantados com o uso dessas substâncias. Geralmente são produtos menores do que os outros e mais feios, disse eu. E foi ela quem me chamou a atenção para esse conceito de beleza.

– Já esteve numa fazenda? Pegou fruta no pé? Ela não cai bonitinha, lavadinha, esfregadinha. Mas alimenta, é tudo o que precisamos. A nossa sociedade ocidental é que começou a precisar comer com os olhos, não é assim em todo o mundo – disse-me ela.

Por coincidência, neste domingo (26), enquanto caminhava com meus cachorros, duas mangas caíram da mangueira no meio da rua por onde eu passava. Por sorte não vinha carro e, antes que elas fossem amassadas, consegui pegá-las. Estavam meio sujas, empoeiradas, ambas tinham uma leve lesão. Levei para casa, lavei, descasquei, cortei em pedaços. E comi. Estavam deliciosas. 

Antes que vocês, leitores, me julguem radical, preciso dizer que eu já vinha com pensamento fixo sobre desperdício de alimentos, desde que li, no site da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a notícia de que entre um quarto e um terço dos alimentos produzidos anualmente para o consumo humano se perde ou é desperdiçado. Isso equivale a cerca de 1,3 bilhões de toneladas de alimentos, o que inclui 30% dos cereais, entre 40 e 50% das raízes, frutas, hortaliças e sementes oleaginosas, 20% da carne e produtos lácteos e 35% dos peixes.

Por ano, 15% dos alimentos são desperdiçados na América Latina, o que corresponde a 6% das perdas mundiais. Isso ocorre em diferentes fases: 28% no consumo, 28% na produção, 22% no manejo, 17% no mercado e distribuição; 6% no processamento.

O tema, de acordo com o artigo escrito por Raúl Osvaldo Benítez, representante regional da FAO para a América Latina e o Caribe, está sendo debatido em diversas instâncias e se relaciona a um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), metas sugeridas pelas Nações Unidas para serem cumpridas pelos países até 2030.

Diz o ODS de número 12: “Até 2030, reduzir pela metade o desperdício de alimentos per capita mundial, em nível de varejo e do consumidor, e reduzir as perdas de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento, incluindo as perdas pós-colheita”.

A FAO calcula que esses alimentos seriam suficientes para alimentar dois milhões de pessoas. Só no Brasil, a fome afeta 14 milhões. No mundo, são 815 milhões. Na venda, o Brasil desperdiça 22 bilhões de calorias, o que seria suficiente para satisfazer as necessidades nutricionais de 11 milhões de pessoas e permitiria reduzir a fome em níveis inferiores de 5%.

A imagem daqueles pimentões jogados fora porque não servem aos olhos humanos não me sai da cabeça.

Há um link possível, nesta reflexão, com o uso absurdo de agrotóxicos no Brasil – somos o país que mais utiliza esses produtos no mundo. “Alimentos que recebem agrotóxico ficam com boa aparência, mas a principal característica é a uniformidade”, esclarece o site Orgânico na Kombi.

“Banana com muitas pintas marrons, por exemplo, está perfeita para o consumo e é, inclusive, mais docinha”, diz o texto do site, que busca desmitificar a ideia de que os produtos orgânicos são mais feiosos.

Em última instância, reduzir a fome no mundo requer também uma redução de desperdícios e perdas. E também exige mudanças de nossos hábitos culturais. Da escolha dos alimentos ao padrão de consumo, tudo precisa ser revisto. No fundo, é uma boa coisa: as crises sempre trazem oportunidades de crescimento. E aqui estou falando de crescimento individual mesmo, não dos países. É para pensar.   

Fonte: G1