Na semana passada, circulou bastante pelas redes sociais uma matéria que informava que 18% dos gays e bissexuais brasileiros e 25% dos paulistanos já vivem com HIV. Você reparou, dentre as várias reações à notícia, que sempre existem aquelas que buscam culpados? Em pleno mês do orgulho LGBT não faltaram acusações culpando as próprias vítimas pela sua epidemia: “irresponsáveis”.
A mesma interpretação tem sido aplicada aos jovens desde 2016, quando ficou claro que a epidemia estava acelerando desproporcionalmente na população de 15 a 24 anos. Disseram que os jovens não viram Cazuza morrer, que banalizaram a aids e abandonaram a camisinha. O mesmo veredito: “irresponsáveis.”
Mas não é isso que defendem os estudiosos do HIV/aids, cujas ideias servem de base para as diretrizes das Nações Unidas e do Brasil no tema. Pelo contrário – para eles, a postura de responsabilizar um grupo ou o indivíduo só piora o lado dos mais afetados.
Assim, convidamos vocês, leitores, a refletir sobre alguns exemplos para entender a visão dos especialistas sobre o assunto.
Vamos pensar em dois adolescentes, um gay e um heterossexual. O adolescente hétero por toda a sua vida terá sua sexualidade considerada como um fato natural. Ele terá suporte familiar, referências na escola e um médico que o compreenda.
O adolescente gay terá chances bem maiores de enfrentar rejeição familiar, bullying e até violência. Jamais discutirá sua sexualidade durante a formação e não será acolhido no posto de saúde.
Agora pense honestamente: quem tem mais chance de viver sua sexualidade em paz, com saúde, autoestima e autonomia? De controlar efetivamente seus riscos?
Nesse exemplo, podemos ver como o que é considerado como ‘escolhas’, na verdade é mediado por um contexto social – no exemplo aqui, de homofobia. Os dois provavelmente terão relações sexuais sem preservativo na vida, mas um será mais culpado por isso que o outro.
Pensemos agora em meninas trans e travestis. Expulsão de casa, barreiras ao trabalho, prostituição quase obrigatória e relações abusivas com homens que têm o poder de impor sexo sem camisinha. Aqui, fica claro que a transfobia e o machismo também determinam tanto quem terá mais chance de se infectar com o HIV, quanto quem acessará menos o seu diagnóstico e tratamento.
Imagine décadas de exclusão, homofobia, transfobia e machismo; somados à ausência de um plano direcionado para enfrentar essas especificidades da epidemia de HIV. O vírus passou a circular tanto nessas populações excluídas que qualquer deslize na prevenção já representa um alto risco de infecção, ao contrário do que ocorre entre pessoas cisgêneras heterossexuais.
Portanto, esses grupos – e outros, como as pessoas negras – têm mais HIV porque têm menos direitos e são marginalizados. Essa é a base do conceito de ‘população vulnerável’.
Quando falamos em ‘populações vulneráveis’, não as estigmatizamos e nem negamos que gays e trans têm as prevalências mais altas e que mais crescem de HIV/aids. Mas entendemos que a responsabilidade desse fato está na sociedade brasileira como um todo.
Se não podemos no Brasil discutir, de maneira franca, temas como identidade de gênero, orientação sexual e LGBTfobia, automaticamente jogamos o enorme grupo de LGBTQIA+ à margem da atenção à saúde e da cidadania.
Cada vez que alguém retira gênero do currículo de uma escola, proíbe uma campanha de prevenção para adolescentes gays, ou desrespeita o nome social de uma travesti em um posto de saúde, está sendo também responsável pelo crescimento do HIV/aids.
E cada vez que a mídia culpa os gays ou outra população vulnerável, também está sendo responsável por disseminar o HIV nesse grupo.
Entendendo causas e responsáveis, é possível perceber que a solução para o controle do HIV/aids no Brasil precisa de mais que julgamentos e camisinha, mas passa por questões estruturais e intersetoriais que vão além da saúde. Entretanto, um bom começo é o diálogo franco e completo com todos sobre saúde sexual e as muitas formas que hoje temos para controlar a transmissão do vírus.
Um exemplo emblemático de medida que ajudará nesse sentido ocorreu esta semana, quando a Organização Mundial da Saúde retirou a transexualidade da lista de doenças psiquiátricas. Isso, no longo prazo, colaborará para reduzir a transfobia – que é o caminho mais consistente para reduzir a vulnerabilidade ao HIV/aids em pessoas trans. Da mesma maneira, medidas efetivas contra o racismo terão impacto no HIV/aids em pessoas negras.
Quando mídia e redes sociais responsabilizam grupos e indivíduos, desviam o foco e deixam de dar visibilidade a fatos de nosso país que poderão realmente impactar no controle da epidemia.
Sorofobia e LGBTfobia impedem que o debate público nesse tema se qualifique. Portanto, é preciso ter uma visão crítica e pensar bem no tipo de reação que você tem ao HIV e seus números, antes de compartilhar e comentar uma notícia como a da semana passada. Afinal, como esperamos ter demonstrado, não é só na hora do sexo que você pode influenciar na epidemia de HIV/aids.
*Com a colaboração de Carué Contreiras. Carué Contreiras é sanitarista e pediatra vivendo com HIV/aids. É ativista LGBT e de HIV, membro do coletivo A Revolta da Lâmpada e da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids. É Cordenador de Educação Comunitária na Casa da Pesquisa do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids do estado de São Paulo.
Fonte: Rico Vasconcelos