Na América Latina, mais de 120 milhões de pessoas correm risco de voltar à pobreza

Por: Heloísa Traiano - Jornal O Globo Depois de uma década de otimismo para a América Latina no início do século, quando a pobreza e a desigualdade caíram na maioria dos países, a região já não mantém o mesmo fôlego. Com as...

Por: Heloísa Traiano – Jornal O Globo

Depois de uma década de otimismo para a América Latina no início do século, quando a pobreza e a desigualdade caíram na maioria dos países, a região já não mantém o mesmo fôlego. Com as economias desaquecidas, 20% dos latino-americanos são hoje considerados “ vulneráveis ” — 122 milhões de pessoas que deixaram de ser classificadas como pobres , mas não conseguem ascender à classe média , e correm o risco de voltar à situação anterior.

Caso ocorra, esse retrocesso anularia os ganhos obtidos desde 2002, ano em que, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), 55% dos latino-americanos viviam na pobreza ou na pobreza extrema. Hoje, essa proporção de pobres ou muito pobres é de cerca de 40% dos 638 milhões de latino-americanos, ou 245 milhões de pessoas.

Em relatório de janeiro, a Cepal também aponta que a redução da desigualdade perdeu ritmo nos últimos cinco anos. Apesar dos avanços remanescentes do período entre 2002 e 2014, a América Latina continua sendo a região mais desigual do mundo, embora não a mais pobre.

A situação latino-americana será um dos temas em discussão nas Jornadas Europeias de Desenvolvimento (EDDs, na sigla em inglês) de 2019, organizadas pela Comissão Europeia, que acontecerão em Bruxelas entre 18 e 19 de junho. No evento, 8 mil participantes de 140 países debaterão caminhos para combater as desigualdades e fortalecer estratégias para o desenvolvimento inclusivo e sustentável.

‘Cultura do privilégio’

Laís Abramo, diretora da Divisão de Desenvolvimento Social da Cepal, explica que a história latina é marcada por períodos de crescimento econômico e redução da pobreza, mas sem queda na concentração de renda. O recuo recente da desigualdade foi consequência direta do boom das commodities e das políticas de transferência de renda implementadas entre meados dos anos 1990 e 2014.

— Em alguns países, a desigualdade começa a aumentar por conta da crise econômica atual, dos cortes em programas sociais e da interrupção dos aumentos de salários mínimos — afirma Abramo, que também aponta razões institucionais para o fenômeno: — A cultura do privilégio é um traço das sociedades latino-americanas que se reproduz nas suas instituições. Só a sonegação fiscal, por exemplo, faz com que se percam, em média, 6,3% dos PIBs dos países da região, seis vezes mais do que os custos médios das políticas sociais ampliadas nos últimos anos.

Mudar a forma como o Estado distribui seus recursos é a plataforma de Carlo Angeles, de 26 anos, vereador de Lima. Um dos 15 jovens líderes escolhidos para participar das Jornadas Europeias de Desenvolvimento, Angeles defende que o Estado peruano — afetado por uma crise política decorrente de escândalos de corrupção em série, incluindo no caso Odebrecht — só adquira bens e serviços com fornecedores social e ecologicamente responsáveis, excluindo violadores das legislações trabalhistas e ambientais.

Brasil é o mais desigual

Para ele, a falta de transparência e a corrupção nos contratos públicos são os primeiros obstáculos a serem superados em seu país. No Peru, uma década de crescimento, baixa inflação e aumento do emprego e da renda fez a pobreza cair de 52,2% em 2005 para 23,9% em 2017, de acordo com o Banco Mundial. Hoje, este processo está parado, seguindo a tendência regional.

— A pobreza é também reflexo da corrupção. O Estado fracassou no monopólio das ações voltadas ao desenvolvimento sustentável e precisa articular atores responsáveis a fim de contribuir com objetivos sociais — diz Angeles. — A crise política tirou a esperança dos jovens. Nosso papel é mudar a cara da política, do empresário e do líder social.

Enquanto o Peru está estagnado, o Brasil retrocedeu. Medida pelo índice de Gini, metade da redução da desigualdade conquistada até 2014 se perdeu nos anos recentes. Marcelo Medeiros, pesquisador do Brazil LAB da Universidade de Princeton, nos EUA, atribui essa perda às características do período pós-recessão:

—O que há de recuperação acontece no topo, e não na base. O desemprego é agora muito relevante para este cálculo, porque começou a ser muito grande entre os mais pobres e os jovens, enquanto antes era maior entre os mais ricos.

O economista Pedro Silva Barros, pós-doutorando da Universidade de São Paulo (USP), explica que a América Latina passou por uma “situação excepcional” entre 2002 e 2013, sendo a única região do mundo onde houve crescimento e redução da desigualdade ao mesmo tempo.

— De 2014 para cá, houve uma forte queda da participação latino-americana no comércio mundial e também uma redução relativa do preço dos principais produtos sul-americanos. Alguns países puxam o aumento da desigualdade na região: de longe, a Venezuela, pela recessão econômica sem precedentes, e também Brasil e Argentina — diz Barros.

Fonte: Jornal O Globo