Murilo Roncolato
Consideradas erradicadas no país, doenças contagiosas voltam a preocupar o Ministério da Saúde e expõem população ao risco de novas ocorrências
No início de julho de 2018, um alerta enviado pelo Ministério da Saúde expôs o quadro de vulnerabilidade do país a doenças antes erradicadas no país. Referindo-se à poliomielite, o comunicado aponta que em 312 municípios brasileiros – sendo 63 da Bahia e 44 de São Paulo –, menos de 50% da população está vacinada.
Para garantir a imunização de uma região, a recomendação internacional é que 95% das pessoas estejam protegidas. Levando em conta o total da população brasileira, a cobertura vacinal contra a pólio hoje é de 77%, patamar semelhante ao do país em 1995.
A baixa cobertura vacinal não se restringe à pólio, doença quase erradicada no mundo todo à exceção de três países: Nigéria, Paquistão e Afeganistão. Sarampo, rubéola e difteria também apresentaram redução no índice de imunização. As três podem ser evitadas por meio de vacinas como a tríplice (sarampo, caxumba, rubéola) ou tetra viral (que inclui varicela) e a DTP (que protege contra tétano, difteria e coqueluche).
O Brasil, que em 2017 não contabilizou nenhum caso de sarampo, entre janeiro e junho de 2018 já registrou 1.686 casos, segundo dados da OMS(Organização Mundial da Saúde).
Embora haja registros de sarampo no Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Rio de Janeiro e São Paulo, a maior parte dos casos está na região Norte do país, em estados como Roraima e Amazonas. Segundo órgãos de vigilância na região, a maioria dos casos se deve à entrada de venezuelanos no países por esses estados.
No país vizinho, onde a população sofre com a falta de vacinas, a situação é crítica, o que coloca a Venezuela como um dos países mais preocupantes do mundo aos olhos da agência de saúde da ONU.
Quanto à pólio, o alerta no Brasil também é influenciado pela situação na Venezuela. Isso porque o país vizinho chamou atenção internacional após uma criança apresentar paralisia dos membros inferiores, o que poderia ser consequência de diversas doenças, inclusive poliomielite. Após investigações a OMS descartou, em meados de junho, a hipótese de este ser um caso de pólio.
Cobertura vacinal
Embora a poliomielite não represente um risco iminente à população global em geral, dado o fato de ter sido erradicada em diversos países nas últimas décadas (entre 1988 e 2017, o números de casos no mundocaiu de 350 mil para 22), o risco de o vírus voltar a infectar pessoas não vacinadas existe e é motivo de preocupação no mundo todo.
É por essa razão que a baixa cobertura vacinal em 312 municípios (5,6% do total do país) acendeu “uma luz vermelha” no Brasil, nas palavras do Ministério da Saúde. Segundo a coordenadora do PNI (Programa Nacional de Imunizações), Carla Domingues, vacinar todas as crianças menores de cinco anos é uma questão de “responsabilidade social”.
“As vacinas ofertadas pelo SUS estão disponíveis durante todo o ano (…). Em muitos casos, pais e responsáveis não veem mais algumas doenças como um risco. Por isso, é necessário ressaltar a importância da imunização e desmistificar a ideia de que a vacinação traz malefícios”.
Carla Domingues
Coordenadora do Programa Nacional de Imunizações no Ministério da Saúde
Segundo dados do Ministério da Saúde, a cobertura vacinal para poliomielite chegou a 100% em 2000 e se manteve assim até 2014, quando passou a acumular quedas até o patamar de 78% em 2017.
Quanto ao sarampo, a cobertura da tríplice viral chegou a 100% em 2003. Desde 2015, no entanto, os números começaram a cair até cobrir 85,2% da população em 2017.
Falsa segurança
Para o presidente do departamento de imunizações da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), Renato Kfouri, entrevistado pelo Nexo, a explicação de por que as pessoas não estão buscando vacinas passa, paradoxalmente, pelo sucesso destas na erradicação de doenças.
“A vacina fez e faz desaparecer doenças, criando uma falsa sensação de segurança. As pessoas não se veem mais sob risco de sarampo, difteria ou pólio. As últimas gerações de brasileiros não sabem o que são essas doenças, não conhecem ninguém que teve, nunca viram no noticiário. Com isso, relaxam sua percepção de risco e consequentemente a busca pela vacina”, diz médico neonatologista. “E não só a população, mas o próprio profissional de saúde. Essa nova geração nunca tratou dessas doenças porque nunca viu um caso dela.”
O especialista cita ainda razões como horário de funcionamento restrito de postos de saúde e eventual falta de vacina em algumas regiões do país como fatores que dificultam a vacinação.
“Vivemos um contexto econômico em que o trabalhador não pode ficar faltando para levar o filho para vacinar com o risco de perder seu emprego. Ele chega lá, não tem vacina, tem que voltar outro dia e os postos não funcionam de fim de semana. O acesso à vacina é muito prejudicado nesse sentido”, diz Kfouri.
Campanha
Já a presidente da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), Isabella Ballalai, diz que o problema para a baixa cobertura não envolve a falta de vacina. Algo que, para ela, acontece quando a população deixa para se vacinar somente quando há surtos e pessoas morrendo de doenças infecciosas e letais como o sarampo.
“É difícil mobilizar as pessoas quando o problema ainda não aconteceu, quando a coisa não deixou de ser um risco teórico para ser um risco imediato”, disse a médica pediatra ao Nexo.
Ballalai relembra que na década de 1970, quando o PNI (Programa Nacional de Imunizações) – que definiu uma estratégia de vacinação em massa e organizou de forma sistemática um calendário de vacinas e campanhas – ainda estava em fase de implementação, essas doenças faziam parte da realidade de todo brasileiro.
“Todo mundo pegava sarampo, coqueluche, caxumba, rubéola etc. São doenças que a gente chamava de ‘comuns da infância’. Muita gente morria por isso”, diz.
Como efeito da vacinação em massa, muitas dessas doenças passaram a ser consideradas erradicadas pela OMS no Brasil, como ocorreu com a poliomielite em 1994 e com o sarampo em 2016.
“Vacina não é capaz de erradicar doença nenhuma, o que faz isso é a vacinação”, diz Ballalai, repetindo uma frase já conhecida entre profissionais de saúde. “Ninguém parou de fazer campanha, mas ela não tem mais a visibilidade e adesão que a gente tinha. O Zé Gotinha [personagem usado nas campanhas de pólio] era um símbolo e agora ele está esquecido. Essa de agosto acontece todo ano, ela não está acontecendo agora por causa do sarampo, esses casos são só mais um motivo para todo mundo ir”, afirmou a especialista, referindo-se à campanha específica contra poliomielite e sarampo que irá de 6 a 31 de agosto.
Crianças e adultos que perderam suas carteiras de vacinação e não sabem se tomaram as doses necessárias para cada uma das doenças também devem se dirigir aos postos de saúde. “Na dúvida, toma de novo. Não faz nenhum mal à saúde. No máximo você toma uma vacina à toa”, diz Ballalai.
Antivacina
No caso do sarampo, o maior problema são os casos “importados”, ou seja, quando um brasileiro viaja para um país onde o vírus está em circulação e retorna, ou ainda quando um estrangeiro contaminado pelo vírus entra no Brasil.
Regionalmente, depois de países do sudeste asiático, a Europa é onde a situação da doença se mostra mais crítica. Por lá, o maior problema apontado não é falta de vacina ou falsa sensação de segurança, mas a indisposição consciente, por medo ou desconfiança, da população em tomar a vacina.
“Lá existe um movimento organizado contra a vacina. As pessoas fazem passeata, lobby por leis”, diz Renato Kfouri, da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria).
Por aqui, grupos antivacinistas são “muito mais tímidos” e não chegam a ser um problema relevante, diz o médico. “Aqui tem rumores de internet, grupos pequenos que não ajudam a saúde pública, deixam muitas famílias hesitantes que acabam indo a pediatras tirar dúvidas sobre a vacina. Mas eles não têm qualquer impacto geral na população”, diz.
A presidente da SBim, Isabella Ballalai, concorda. “Por aqui é uma coisa muito pequena. O Brasil não é um país em que a população tem medo de se vacinar. Principalmente quando há surto e as pessoas estão em risco, como estamos vendo com o sarampo agora, as pessoas buscam a vacina”, diz.
Ela aponta a divulgação de notícias falsas (fake news) pelas redes sociais como um novo problema a ser contornado também na área da saúde. “Fake news atrapalham todas as áreas, mas na área de saúde é uma coisa bastante grave, basta ver como foi com a febre amarela”, disse a especialista, referindo-se à divulgação de informações falsas sobre a vacina e seus efeitos colaterais em meio ao surto da doença no país entre 2016 e 2018.
Para Kfouri, há um desafio dos profissionais de saúde em convencer a população de que tomar vacina quando se está saudável é menos danoso do que tomar remédio quando se está doente. “A percepção do efeito colateral sobre remédios é mais tolerada. As pessoas não se importam, elas têm um problema e querem resolver. Com a vacina é diferente, mesmo que a vacina tenha um milésimo do efeito tóxico de um antibiótico que se toma para infecções que poderiam ser prevenidas por ela.”
Pólio e sarampo
A poliomielite é uma doença viral infecciosa que pode, em uma minoria dos casos (1 a cada 200), atacar nervos musculares causando paralisia definitiva em poucas horas, geralmente nos membros inferiores. Em 10% dos casos de paralisia, a infecção atinge músculos respiratórios, levando à morte.
A doença pode ser contraída por contato com água ou comida contaminadas (menor parte dos casos) ou transmitida entre pessoas contaminadas por via oral (contato com gotículas por meio de tosse, espirro ou mesmo ao falar) e fecal (contato com fezes contaminadas).
Os sintomas são semelhantes aos de outras infecções comuns – o que resulta em muitos casos de pessoas com pólio, quando a doença não causa paralisia, a não serem devidamente diagnosticadas. São eles febre, cansaço, dor de cabeça, vômito e enrijecimento do pescoço e dor nos braços ou pernas.
O sarampo, por sua vez, é uma doença viral infecciosa, muito contagiosa (transmitida por via oral) e de alto potencial letal. No mundo, é uma das maiores responsáveis pelos números de mortalidade infantil.
Seus sintomas envolvem febre, dor de cabeça, tosse, manchas brancas na mucosa bucal, conjuntivite e manchas vermelhas (que se espalham do rosto para o resto do corpo).
Nos dois casos, as doenças não têm cura, mas podem ser evitadas por meio de vacina.
Contra pólio, há duas vacinas. Uma chamada VOP (Vacina Oral Poliomielite) que é aplicada em gotas em crianças aos 2, 4 e 6 meses de vida. Para essa, há necessidade de reforços entre 15 e 18 meses e, depois, entre 4 e 5 anos de idade. A outra vacina é a VIP (Vacina Inativada Poliomielite), injetável e aplicada em duas doses: uma aos 15 meses e outra aos 4 anos.
A vacina para sarampo envolve duas doses: uma aos 12 meses (tríplice) e a outra aos 15 meses (tetra viral). Crianças maiores de 5 anos que não tomaram a vacina previamente podem se imunizar por meio de duas doses da tríplice. Adultos não protegidos também podem buscar se vacinar recebendo uma (entre 30 e 49 anos) ou duas doses (10 a 29 anos) da tríplice.
Avançar para voltar
Para o país superar o problema da baixa cobertura vacinal, não há muito mistério. “As pessoas têm que se vacinar. Não tem outro jeito. A vacinação mudou a mortalidade infantil, foi um dos fatores que permitiu aumentar rapidamente nossa expectativa de vida. Não dá para a gente perder tudo isso agora”, diz a médica Isabella Ballalai.
Para Renato Kfouri, agora o governo precisa reforçar as campanhas de vacinação e vigilância e buscar parcerias com organizações da sociedade civil, como a feita com a Pastoral da Criança no passado.
“A sociedade de alguma maneira tem que participar disso. Não dá para voltar para aquele modelo do passado, em que os postos de saúde abriam e ficavam esperando a família levar as crianças para vacinar. É preciso pensar em estratégias que levem essa questão para as pessoas”, diz.