Quando o ato de vestir vai muito além da função estética

Empresas brasileiras apostam no engajamento político e social e se diferenciam do mercado por Paula Passos Insatisfeitas com o antigo trabalho, as designers gráficas Aline Tavares e Claydja Cabral montaram a Oyá Estúdio...

Empresas brasileiras apostam no engajamento político e social e se diferenciam do mercado

 

Insatisfeitas com o antigo trabalho, as designers gráficas Aline Tavares e Claydja Cabral montaram a Oyá Estúdio Criativo, no Recife. Há três anos no mercado, a empresa cria a identidade visual de marcas, faz materiais promocionais para eventos, diagrama livros e revistas, produz peças para redes sociais, além de cadernos artesanais, quadros e ímãs de geladeira. Mesmo com clientes de diversos grupos sociais, a dupla se posiciona no mercado a favor das causas feminista, LGBT+ e antirracista. “Para nós  isso é muito natural, porque na nossa vida pessoal, sempre encaramos essas lutas juntas. Nos conhecemos em militâncias, começamos um relacionamento e estamos casadas hoje”, contou Aline.

Produtos bonitos e com boa qualidade são encontrados facilmente no mercado, mas ter um propósito, contar uma história, compartilhar uma pesquisa, um pensamento são valores que vão muito além do produto. O ato de vestir algo vai muito além da função estética. Usamos o que acreditamos e carregamos com a gente os valores e causas que as marcas representam

Amanda Braga  Empresária

A Oyá Estúdio Criativo faz parte de um grupo cada vez mais numeroso de marcas brasileiras que se preocupam não apenas em comercializar produtos e serviços, mas que se posicionam politicamente em suas coleções e internamente com os seus colaboradores.

Aline, que é designer com formação pelo Instituto Federal de Pernambuco, disse que já perdeu clientes por fazer uma postagem sobre visibilidade lésbica com sua companheira. “Perdemos seguidores, mas isso não prejudicou nossa empresa. Acreditamos que há muita gente boa no mundo, que busca pessoas com ideais parecidas para trabalharem juntas”, pontua.

Durante a entrevista para o #Colabora, Aline contou que o maior desejo da Oyá é conseguir clientes maiores, para que a empresa consiga fazer um preço menor para pequenos empreendedores, que se preocupam com a comunicação visual, mas que não têm condições de pagar. “Tentamos sempre adaptar os pacotes, para que o valor faça sentido à realidade do cliente. Acreditamos que uma nova marca é um recomeço e, muitas vezes, ela faz parte do sonho de nossos clientes; e a gente se preocupa em valorizar o sonho das pessoas, em criar junto e fazer com que a economia se movimente”, detalha Aline, que também permuta serviços e produtos com parceiros. O próximo passo é ministrar oficinas gratuitas de encadernação para mães de baixa renda, no Bairro da Várzea, onde as empresárias moram.

Há três anos no mercado, a Oyá se posiciona no mercado a favor das causas feminista, LGBT+ e antirracista. Foto Divulgação
Há três anos no mercado, a Oyá se posiciona a favor das causas feminista, LGBT+ e antirracista. Foto Divulgação

Peças que empoderam

A Trocando em Miúdos é outro exemplo recifense, que há 12 anos está no mercado, enaltecendo as mulheres por meio de seus produtos. As sócias Juliane Miranda e Amanda Braga são as fundadoras da empresa e conseguiram construir uma equipe de mais de 90% de colaboradoras. “É um posicionamento de marca, uma escolha deliberada, de fortalecer as mulheres no mercado de trabalho. Também está no nosso DNA dar protagonismo às mulheres e empoderá-las no dia a dia, por meio dos nossos acessórios”, explica Amanda Braga.

As peças da marca contam histórias e muitas mulheres já foram homenageadas. Entre elas, Clarice Lispector, Tarsila do Amaral, Coco Chanel e algumas divas do jazz. Hoje, quem vem ganhando protagonismo são as funcionárias da empresa, que têm suas histórias contadas em um breve texto, escrito atrás da embalagem de cada peça. “Produtos bonitos e com boa qualidade são encontrados facilmente no mercado, mas ter um propósito, contar uma história, compartilhar uma pesquisa, um pensamento são valores que vão muito além do produto. O ato de vestir algo vai muito além da função estética. Usamos o que acreditamos e carregamos com a gente os valores e causas que as marcas representam”, garante Amanda Braga.

O próximo passo da marca é chegar ao público americano. Amanda está morando nos Estados Unidos desde abril e, durante os meses de agosto e setembro, expôs os acessórios em uma loja multimarcas em Miami, que foca em produtos feitos à mão e com uma escala menor de produção. Em Nova Iorque, a Trocando participou de uma feira de artistas e designers, em Williamsburg. “Nossa ideia é mostrar o nosso trabalho para um outro público e aos poucos ir conhecendo o mercado americano para entender o que mais pode se adequar à nossa realidade. Atualmente, temos um ponto fixo em Miami”, contou em entrevista por e-mail. A marca, além de apoiar coletivos feministas, também tem o Clube do Livro, onde clientes e colaboradoras conversam uma vez por mês sobre literatura produzida por mulheres.

No Rio de Janeiro, a produtora cultural Marcela Cavalcanti decidiu largar a produção cultural depois de um curso de joias que fez. “Eu fazia como hobby, mas resolvi investir nisso. Hoje, entrego peças para todo o país pelo site e pelas redes sociais, além de vender em feiras de artesanato no Rio de Janeiro”, conta. Para ela, que tem modelos trans e negros em seus ensaios fotógrafos, o mais difícil é dar conta de tudo sozinha: “Não acho que haja dificuldade para empreender por eu ter um perfil mais inclusivo. Acho que empreender é difícil mesmo. Adoraria ficar no ateliê fazendo joia o dia inteiro, mas tenho que cuidar do financeiro, mídias sociais, clientes, buscar pontos de venda, fazer as tabelas de contabilidade, precificar, comprar material”. As peças de Marcela custam entre R$ 80 e R$ 560 e já foram usadas pelas atrizes da novela “Outro Lado do Paraíso”, da Rede Globo.

Em Porto Alegre, a Afirme nasceu do desejo de encontrar produtos que não estavam disponíveis nas prateleiras: “o que nos motivou foi sentirmos, como consumidores, a dificuldade de acesso a bandeiras e outros produtos (camisetas, casacos) voltados para a promoção do orgulho LGBT. Logo percebemos que poderíamos fazer muito mais do que facilitar o acesso a esse tipo de produto, já que são artigos que representam a nossa luta e resistência. Não é só consumir um produto, mas aderir a um estilo de vida. De tomar partido. De afirmar”, explica Susana Steffens, sócia fundadora.

Susana conta que a ideia de negócio se baseia na criação de uma bolha de acolhimento e fortalecimento coletivo. Daí a ideia de convidar mães de LGBTs para se integrar ao trabalho: “nossas bandeiras são produzidas por elas e na parte de confecção, nossa principal fornecedora é a Cooperativa de Mulheres Unidas Venceremos”, disse.

Para Rafa Mattos, empreendedor social e consultor de marketing de afetividade, a construção de um consumo consciente vem a partir do afeto: “Quando você se sensibiliza com as causas que as empresas defendem ou quando você tem pessoas próximas que se identificam com elas, é muito comum que isso aproxime o consumidor dessas marcas”, explica.

Em São Paulo, a Feira Jardim Secreto, existente de 2013, reúne 180 marcas de produtos brasileiros, feitos à mão, muitos deles em defesa de causas. “Nosso maior público é de mulheres na faixa dos 30. Elas também buscam marcas engajadas em causas feministas e antirracistas. Para nós é de extrema importância que essas empresas participem da feira, porque acreditamos que artesanato é arte e arte é revolução”, afirma Gladys Tchoport, idealizadora do projeto.

Nem sempre é rentável

Mas nem só de histórias de sucesso vivem as empresas ativistas. É o exemplo da marca de lingeries carioca Tulli, que nasceu em 2012 e fechou suas portas em setembro deste ano. A Tulli vendia lingeries para mulheres de diversos manequins, com peças confortáveis e bonitas. “Nossa cadeia produtiva era toda legalizada, com matéria-prima e mão de obra de qualidade, mas as fábricas exigiam quantidades mínimas cada vez maiores e o roubo de carga encarecia bastante o transporte. Além disso, precisei mudar de estado, por motivos pessoais, e não ia ficar mais rentável manter a empresa com foco em produtos”, explica Bel Leite.

Negras, brancas, lésbicas, heterossexuais eram as modelos dos ensaios da marca, com o mínimo de edição possível e isso atraía o público: “nosso número de ‘fãs’ era incrível, mas consumiam pouco. Nosso esforço nos rendia a construção de um conceito de marca muito sólido e bonito, mas não rentável. Cada vez que nos posicionávamos de forma mais explícita, perdíamos vendas”, afirmou.

Para ela, muitas pessoas não se inibem em consumir marcas que se utilizam de estereótipos de subserviência femininos e nem se importam em saber se as empresas usam mão de obra barata, sem qualificação durante os processos. Os próximos passos das sócias envolvem a criação de uma nova Tulli, com foco em serviços: cursos para pequenas e microempresárias, além de workshops voltados a todas as mulheres na área de estilo, autoestima e planejamento financeiro.

Escrito por Paula Passos

Jornalista (UFPE), especialista em Marketing (UPE), com passagens pela TVU Recife, Portal LeiaJá e Rede Globo NE. Em 2017, venceu o Globo Lab – Profissão Repórter. Também já trabalhou com assessoria de comunicação para o terceiro setor. Atualmente, é repórter freelancer. Nas horas vagas, escreve crônicas e críticas de filmes no @blogdetalhe.

 

Fonte: Portal Colabora