Cultura, futuro urbano

Relatório da Unesco poderia resumir-se numa ideia estrutural: Sem cultura, as cidades como espaços de vida vibrantes não existem, são meras construções de cimento e aço, propensas à degradação e à fratura social. Por Rui...

Relatório da Unesco poderia resumir-se numa ideia estrutural: Sem cultura, as cidades como espaços de vida vibrantes não existem, são meras construções de cimento e aço, propensas à degradação e à fratura social.

Por Rui Matoso

Em 2015 a UNESCO lançou o programa, Iniciativas para a Cultura no Desenvolvimento Urbano Sustentável , procurando evidenciar a ligação efetiva entre a implementação das Convenções Culturais da UNESCO  e as metas da Agenda para o Desenvolvimento Sustentável (2030), a qual reconhece integralmente, ao contrário da anterior agenda (Objetivos de Desenvolvimento do Milénio, até 2015), o papel da cultura no desenvolvimento urbano sustentável. Entre os 17 objetivos desta Agenda para a sustentabilidade das cidades, o Relatório torna evidente que a dimensão cultural das cidades desempenha um papel fundamental na concretização de uma perspetiva holística do desenvolvimento urbano sustentável, particularmente através da salvaguarda do património mundial, cultural e ambiental, mas também através da promoção das indústrias culturais e criativas, sublinhando o seu potencial como recurso para o desenvolvimento urbano sustentável.

O Relatório poderia resumir-se numa ideia estrutural: Sem cultura, as cidades como espaços de vida vibrantes não existem, são meras construções de cimento e aço, propensas à degradação e à fratura social. É a cultura que faz a diferença. É a cultura que define a cidade como aquilo a que os antigos romanos chamavam civitas, um complexo social coerente, o corpo coletivo de todos os cidadãos.

A estrutura do documento divide-se em cinco partes:

-A Parte I situa o Relatório no seu contexto global, apresentando a situação atual da cultura e do desenvolvimento urbano sustentável com base nos resultados de um inquérito global da UNESCO, juntamente com nove parceiros regionais.

-A Parte II centra-se em reflexões temáticas sobre o papel da cultura para o desenvolvimento urbano sustentável: (1) promover uma abordagem centrada no cidadão; (2) assegurar um ambiente urbano de qualidade para todos; (3) promover a formulação de políticas integradas, com base no poder da cultura.

-As Conclusões e Recomendações, compreendem um resumo das principais recomendações retiradas das conclusões das partes regionais e temáticas do Relatório.

-Os Dossiês sobre as Redes de Desenvolvimento Urbano Sustentável da UNESCO incluem secções sobre Parcerias Estratégicas para as Cidades da UNESCO; Patrimônio Mundial e Cidades; A Rede de Cidades Criativas da UNESCO (UCCN); A Coligação Internacional de Cidades Inclusivas e Sustentáveis; ICCAR; O Programa do Homem e da Biosfera da UNESCO (MAB) para Cidades Sustentáveis; A Rede Global da UNESCO de Cidades Educativas (GNLC); Redução de risco de desastres para desenvolvimento urbano sustentável; e Água e Cidades Sustentáveis.

-Por fim, um Atlas incorpora mapas detalhados para situar as cidades pertencentes às redes da UNESCO.

O enfoque da UNESCO na relação entre cultura e desenvolvimento vem desde a criação do programa Década Mundial do Desenvolvimento Cultural 1988 / 1997, cujo propósito foi o de repensar o desenvolvimento com “factor humano” após a conclusão de que os esforços desenvolvidos a nível mundial haviam falhado por terem subestimado a dimensão cultural dos projetos de desenvolvimento. Em 1992 a UNESCO criou uma Comissão Mundial independente sobre Cultura e Desenvolvimento, cujo resultado foi a realização do Relatório mundial publicado em 1995 com o título Our Creative Diversity.

A Conferência Intergovernamental sobre Políticas Culturais para o Desenvolvimento – organizada pela UNESCO em Estocolmo, entre 30 de Março e 2 de Abril de 1998 -, cujo objetivo principal foi o de “traduzir” as ideias contidas no Relatório Our Creative Diversity num plano de ação para as políticas culturais, reconhecendo como primeiro princípio que «o desenvolvimento sustentável e o florescimento cultural são interdependentes», e recomendando aos Estados diversos objetivos, sendo que o primeiro é «tornar a política cultural uma componente chave das estratégias de desenvolvimento sustentável». Esta conferência reafirmava os princípios fundamentais da Mondiacult  (México,1982) nomeadamente o conceito de cultura a utilizar no desenvolvimento de políticas culturais.

Ainda que ao nível mundial (Nações Unidas) – mas também na Europa, Conselho da Europa  – sejam persistentemente, e ao longo de décadas, advogadas as melhoras práticas, casos de estudo, e ideias em torno de políticas culturais focadas no Desenvolvimento Humano Sustentável, na realidade e ao nível nacional, local e regional, pouco se tem avançado na aplicação e no entendimento destas políticas fundadas na ideia de Desenvolvimento como Liberdade  (Amartya Sen). À escala mundial é também importante verificar que o próprio Relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) de 2004, aborde a Liberdade Cultural num Mundo Diversificado .

Um caso concreto, que revela a forma como as instâncias de governação pública portuguesas pouco ou nada se preocupam em concretizar, nos seus territórios, as convenções que ratificam: em março de 2007 foi adotada pela 33ª Conferência Geral da UNESCO, e ratificada por Portugal, a Convenção da UNESCO sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, a qual explicita que ao ratificar esta convenção, e conforme estipulado pelo Artigo 13º da Convenção, Portugal e os restantes Estados-membros da União Europeia, comprometem-se a empenhar-se em integrar a cultura nas suas políticas de desenvolvimento – o que, obviamente, se deve verificar a todos os níveis territoriais das políticas públicas, e não apenas à escala do Estado-nação -, tendo em vista criar condições propícias ao desenvolvimento sustentável e, neste contexto, privilegiar os aspetos ligados à proteção e à promoção da diversidade das expressões culturais.

Assim, a pergunta que devemos fazer, é: como é que este Artigo 13º foi implementado a nível regional e local, em Portugal? Não foi, e não foi por várias razões, uma delas deve-se ao facto de a Agenda 21 Local, tal como a agenda (Objectivos de Desenvolvimento do Milénio 2015,) não contemplar explicita e criteriosamente a dimensão cultural. Foi com o intuito de colmatar essa lacuna que surgiu a Agenda 21 da Cultura  (A21C), mas também para propiciar aos governos locais uma visão de políticas culturais assente num forte compromisso com cidadania e a diversidade cultural. Contudo, em Portugal, o único município que decidiu aderir à A21C, enquanto cidade piloto, foi Lisboa. Os restantes 307 municípios, salvo exceções, continuam na senda das políticas culturais carismáticas, i.e., dependentes de uma liderança assente na visão e no gosto pessoal dos autarcas.

A relação entre cultura e desenvolvimento sustentável não é pois a única lacuna verificável, outros aspetos poderão ser apontados e criticados, quer em Portugal quer noutros países da União Europeia. Em Portugal, o Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (http://www.cnads.pt/ ) afirma que a «participação pública, que é a razão de ser da Agenda 21 Local, está votada a um papel secundário, não se sublinhando adequadamente a sua importância e o pleno envolvimento de todos os atores sociais nas várias fases do processo».

O Século das Cidades, criatividade crítica

O séc. 21 já foi nomeado como o século das cidades, pois estima-se que em 2050 a população mundial residente nas cidades  seja de 66%. Um dos maiores desafios prende-se com a gentrificação desencadeada por processos de mercado da habitação e renovação urbana, que levam ao deslocamento de residentes, e que pode diluir a autenticidade dos bairros antigos mais vibrantes, e ao mesmo tempo aumentar a exclusão de moradores de baixos rendimentos, aumentando assim o custo social para a comunidade urbana em geral.

Este novo relatório da Unesco Cultura, futuro urbano , vem, no entanto, renovar o apelo do direito à cidade, como defendem diversos geógrafos e urbanistas, de Henri Lefebvre a David Harvey: “a liberdade de fazer e refazer as nossas cidades, e a nós mesmos, é, a meu ver, um dos nossos direitos humanos mais preciosos e ao mesmo tempo mais negligenciados”. É que, como refere Andy C. Pratt, no Relatório, não podemos esquecer a evidência de que a “relação mutua entre cultura e meio-ambiente produz significados e valores, mediados pelas pessoas e as suas práticas”.

Não se trata, portanto, de entender a cidade e a cultura como meros instrumentos da condição humana, mas antes como extensões incorporadas em cada cidadão, capazes de produzir práticas sociais e culturais que renovam os modos de vida e as sociabilidades urbanas. E é basicamente este complexo sociocultural que modula, melhor ou pior, as cidades. Pior, se essa modulação entre pessoas, representações, identidades e imaginários, espelhar formas de poder e de governação ensimesmadas e viciadas na manutenção do poder partidário e na liderança autoritária. Melhor, se a articulação entre atores sociais, os patrimónios e o meio urbano produzir viabilidade e vitalidade cultural, sendo esta interação sustentada por uma administração urbana vocacionada para entender o fenómeno cultural como um bem comum e um direito fundamental do ser humano: o de realizar plenamente o seu potencial de florescer num ecossistema que não o constranja sistematicamente nesse devir coletivo. Talvez seja isto, afinal, a Democracidade, de que fala o sociólogo Carlos Fortuna: “A utopia credível que temos à nossa frente é, por isso, a da construção da democracidade (…) Por isso, não podemos declarar que a democracia e o sentido (comunitário) de partilha se encontram garantidos pela revitalização cultural, no embelezamento estético, e na atratividade cívica do espaço público das cidades. É preciso que a interação que esse espaço público proporciona tenha real sentido democrático, o que significa ser capaz de fomentar e manter uma relação social significativa entre as expressões culturais diversas e mesmo socialmente díspares que constituem a cidade.”

Neste horizonte urbano, o conceito de “Cidade Criativa ” vem sendo plasmado nas cidades europeias, designadamente em Portugal, sob o modelo neoliberal da economia e das classes criativas  preconizado por Richard Florida, e não tanto segundo uma outra versão, mais “socialista” e intercultural, preconizada por Phil Woods e Charles Landry.

Para Phil Woods , a cidade criativa trata de planear com sensibilidade cultural e em torno de questões concretas e com pessoas comuns, de baixo para cima; em vez de afunilar a noção de criatividade a uma elite institucionalizada, capaz de impor uma agenda “criativa” de cima para baixo, como ilustra o pensamento de Florida.

No entendimento de Charles Landry, uma cidade que encoraja as pessoas a trabalharem com a sua imaginação, vai muito para além do paradigma da engenharia urbana, por isso, a noção de Cidade Criativa preocupa-se com a forma como as diferenças de opinião podem ser negociadas e gerar novos desenvolvimentos. Nesse sentido, Landry defende a existência de um Creative Milieu, um contexto urbano no qual as pessoas se sentem encorajadas para participar, interagir, comunicar e partilhar. Uma cidade criativa precisa de feedback constante de seus cidadãos, pois o ato de votar a cada quatro é insuficiente para transmitir as ideias das pessoas ao governo local.

O diferendo entre as visões de Florida e as de Woods e Landry, não reside tanto no reconhecimento da importância da economia criativa na economia geral das cidades e no emprego. Um dos desacordos incide especificamente na forma como uma certa visão neoliberal da cidade criativa privilegia a dominação do capitalismo cultural-criativo, diminuindo o potencial da criatividade como bem comum (valor de uso) ao estatuto de mero recurso económico e matéria prima das indústrias criativas, fomentando assim um consenso tecno-estético transformado em consumo concupiscente, e, simultaneamente, relegando para fora de cena as práticas criativas, cívicas e artísticas, cuja rentabilidade não seja valorizada em termos estritamente lucrativos (valor de troca). Paralelamente, é sabido que esta predominância do poder “musculado” da visão economicista da criatividade é causado por uma governação do tipo “deixa andar”, típica aliás de uma administração pública infiltrada pelo espectro da mão invisível dos mercados…tudo se há-de resolver, segundo a lógica mercantilista da procura e da oferta.

Contudo, é ainda possível encontrar algum pensamento político heteredoxo em instituições como a UNESCO ou a Agenda 21 da Cultura, que ainda insistem, e bem, em promover processos participativos através da cultura, de modo a valorizar o papel dos cidadãos na governança local dos seus municípios e cidades (vide conclusões do Relatório).

Artigo de Rui Matoso