O Brasil é o maior mercado de agrotóxicos do mundo, com consumo de US$ 7,1 bilhões por ano. O poderoso lobby ruralista, o país aponta perigosamente para o aumento deste consumo com o avanço no Congresso do PL 6299, conhecido como “pacote do veneno” que, entre outras coisas, afrouxa controles do uso e fabricação de agrotóxicos
O Brasil é um país que, sabemos, precisa ser reconstruído sob vários aspectos; para tanto, precisa fazer as opões políticas corretas. Uma delas sobre o modelo de desenvolvimento agrícola.
Segundo estudos da consultoria alemã Kleffmann Group, somos o maior mercado de agrotóxicos do mundo, com consumo de US$ 7,1 bilhões, contra US$ 6,6 bilhões dos Estados Unidos. Mas é um mercado que ainda pode se expandir, pois, há uma década, gastávamos apenas US$ 87,83 por hectare, contra os US$ 851,04 do Japão.
Parece que o único argumento que balança a opinião pública é o argumento malthusiano: sob a agroecologia, é impossível produzir alimentos em quantidade suficiente para toda a humanidade. O que se expressa assim é a contradição de interesses capitalistas, formados durante a revolução verde, e um projeto de futuro saudável para a humanidade.
O modelo agroecológico conta com experiências bem sucedidas, aqui e no exterior, a ponto de se tornar altamente desejável. Ele também é o único modelo capaz de fomentar a agricultura familiar, cuja próxima década será o tema do desenvolvimento rural, por resolução da ONU.
Além disso, qualquer economista sabe que a produtividade do trabalho só é relevante na determinação da margem de lucro quando ela é desigual no mesmo segmento produtivo. Portanto, deve apavorar os defensores do agro-envenenamento a demonstração cabal de que a produtividade agroecológica pode ser superior à agricultura convencional, como se comprova na produção da cana para o açúcar da marca Native, em Sertãozinho (SP), 23% superior à produtividade obtida de modo convencional, e que é exportado para 60 países.
Enquanto a Rússia, China, Estados Unidos e Qatar, por exemplo, estão criando e adotando novas tecnologias que substituam o uso dos agrotóxicos e transgênicos, o Brasil parece ser o mais recente campo de batalha onde a luta entre os dois modelos agrícolas assume feição dramática.
Por conta do poderoso lobby ruralista, o país aponta perigosamente para o sentido contrário ao desejável: avança no Congresso o PL 6299, conhecido como “pacote do veneno” que, entre outras coisas, afrouxa controles hoje existentes sobre o registro e uso de agrotóxicos e permite a instalação de fábricas de produtos que, mesmo proibidos aqui, serão feitos para exportação, tornando-nos uma espécie de plataforma para o envenenamento em escala mundial. Não por acaso, o grande tema da Brasil AgrochemShow 2018, feira de negócios agroquímicos, foi justamente o registro de produtos dessa natureza.
A Basf e a Mitsui possuem mais de 20 moléculas aguardando autorização para entrar no mercado. Elas gastaram juntas mais de 560 milhões de euros para desenvolver uma molécula chamada profelanide, ainda não autorizada em qualquer outro país. É natural que busquem um ambiente institucional que possa garantir-lhes o retorno do capital investido, e esse paraíso é no que pretendem transformar o Brasil. Com os acordos ambientais firmados recentemente na China, a produção de ingredientes ativos para defensivos foi reduzida à metade o herbicida glifosato, utilizado em lavouras de soja, milho e algodão, só neste ano subiu 25% em preço.
A chamada “revolução verde” do 2º pós-guerra foi o ápice desse modelo de desenvolvimento que hoje se contesta. O que está em destaque, em proporções dramáticas, advém do envenenamento crescente do solo, da água e das espécies animais que se nutrem das plantas, inclusive a espécie humana, pois os agrotóxicos produzem, comprovadamente, inúmeras doenças nos organismos animais, como câncer, alterações hormonais, má formação fetal, desequilíbrios neurológicos e comportamentais, etc.
O mercado de agrotóxicos é praticamente monopolizado por poucas indústrias que respondem por 80% da sua produção mundial: Dow Chemical, Basf, Bayer (que absorveu a Monsanto) e Syngenta. Como sofrem restrições crescentes no mundo é natural que procurem se instalar no seu maior mercado consumidor, que é o Brasil.
Portanto, a questão política que os brasileiros devem decidir é: por que temos que arcar com esse lixo da civilização agrária? E a resposta é simples. O agronegócio, defendido pela “bancada ruralista”, aproveita-se da conjuntura política criada pelo golpe contra Dilma detalha o seu “golpelho” dentro do golpe maior, impondo-nos os interesses mundiais da indústria do veneno com os quais é solidário e dos quais é beneficiário.
Até por conta dessa ofensiva política dos ruralistas, os grupos ligados às várias vertentes do movimento agroecologista vem apresentado uma crescente organização e expansão, preparando-se para os embates em todas as frentes, e não só no parlamento.
As tensões políticas mais fortes provavelmente se expressarão em torno de estratégias de transição da agricultura convencional para aquela de perfil agroecológico. É esse objetivo que dá sustentação a ofensivas pontuais, como um programa de restrição crescente ao uso de agrotóxicos, em tramitação no Congresso, e demandas por financiamento público para ela, como já existe sob a forma de lei no estado de São Paulo. Mas em contraste com os parcos recursos para essa finalidade, São Paulo perde R$ 1,2 bilhões anuais em isenções fiscais para os agrotóxicos. Além disso, o agronegócio exportou R$ 86 bilhões em 2016, contra uma arrecadação de impostos de exportação pífia: R$ 44 mil.
Expressão de um confronto civilizacional arraigado na sociedade moderna – e por conta da fragilidade do governo brasileiro – é de se prever que ele será longo e exaustivo, expandindo-se por vários domínios da cultura. A guerra de informação, por exemplo.
Já em 2013 a Basf financiou a escola de samba Vila Isabel, num enredo que exaltava o agronegócio e o “celeiro do mundo” em que havia convertido o Brasil. Recentemente, veio à luz o livro do jornalista Nicholas Vital, intitulado Agradeça aos agrotóxicos por estar vivo, expondo de modo alarmista o “perigo” da agroecologia como expressão de um pensamento anti-científico; a Syngenta publica informes publicitários contrapondo-se ponto a ponto às teses dos seus adversários; o agronegócio contratou Nisan Guanaes como atacante do seu time, e assim por diante.
Vivemos a emergência à luz do dia de um combate mundial já antigo entre os dois modelos de civilização agrícola: um, que persegue a qualidade de vida saudável e, outro, a administração de venenos ao meio ambiente, de modo a garantir a produtividade e o lucro dos grandes capitais do setor. É de se esperar que os candidatos a Presidência e a deputados assumam compromissos claros com a vida ou a morte para, assim, serem julgados pelos seus eleitores.
Carlos Alberto Dória é doutor em Sociologia pela Unicamp, especialista em sociologia da alimentação.